por Ivandick Cruzelles Rodrigues[i]
A desoneração da folha de pagamento tem sido um tema central e controverso na política econômica brasileira recentemente, gerando enorme queda de braço entre o Poder Executivo — mais especificamente o Ministério da Fazenda e seu titular, Fernando Haddad — e o Poder Legislativo. Para quem não está familiarizado com o tema, a desoneração é uma política de incentivo fiscal que permite às empresas optarem por recolher uma contribuição previdenciária sobre a receita, que pode variar de 1% a 4,5% dependendo do setor, em vez dos 20% sobre a folha de pagamento. Na época em que essa política foi criada — nos idos de 2011, com a publicação da Lei n. 12.546 de 14.dez.2011 —, seu principal objetivo era o de reduzir a carga tributária sobre os setores mais intensivos em contratação de mão de obra, incentivando assim a geração de empregos[ii].
No início deste ano, o governo publicou a MP nº 1.208/2024, que revogou dispositivos da anterior MP nº 1.202/2023. A MP anterior previa a reoneração gradual da folha para os 17 setores econômicos selecionados, começando em abril de 2024 e estendendo-se até 2027. A nova MP, no entanto, restabeleceu a desoneração da folha de pagamento para esses setores, proporcionando maior flexibilidade financeira e restabelecendo a segurança jurídica para as empresas afetadas. Este movimento ocorreu após um tenso embate entre o Governo Federal e o Congresso Nacional, que já havia no final do ano passado deliberado pela manutenção da desoneração da folha até 2027 (Lei n. 14.784, de 27.dez.2023), contrariando os planos iniciais do Executivo de atingimento da meta de “Déficit Zero” para o ano de 2024. A decisão do governo de impor a reoneração, valendo-se de medida provisória mesmo após recente manifestação do Legislativo (com aprovação de lei e derrubada de vetos), gerou polêmica e fez com que Empresários e Parlamentares saíssem à campo para expressar suas preocupações sinceras e significativas, ecoando-as o máximo possível por todos os canais de comunicações alcançáveis, dentre as quais se incluía a ameaça de potencial queda de postos de trabalho disponíveis nesses setores eleitos— o que culminaria em aumento do desemprego formal (já que se tratam de empregos registrados e com garantias legais), redução de investimento privado (pois terão de pagar mais tributos) e aumento de despesas públicas (com o pagamento de benefícios e auxílios à população recém-desempregada).
Outra alteração estabelecida pelas MPs em detrimento da Lei n. 14.784/2023 (e mais recente objeto dessa polêmica, diga-se de passagem) foi o restabelecimento de alíquota das contribuições previdenciárias sobre a folha de pagamento devida pelos pequenos municípios (até 156 mil habitantes) — de 8%, nos termos da lei supracitada, para os já tradicionais 20%. No dia de 02.abr.2024, o Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco, prorrogou parcialmente a validade da MP n. 1.208/2024 por mais 60 dias, derrubando, contudo, a parte que tratava desse restabelecimento de alíquota[iii]. O custo dessa derrota representa um impacto de aproximadamente R$ 10 bilhões aos cofres públicos[iv], segundo as estimativas do Ministério da Fazenda e da Confederação Nacional dos Municípios, e pode acabar envolvendo o 3º Poder da República, vez que já se cogita a judicialização da matéria junto ao STF[v].
A desoneração da folha de pagamento é vista por muitos como crucial para a competitividade de setores intensivos em mão de obra no Brasil, especialmente em um contexto de busca por recuperação econômica e geração de empregos. A opção pela desoneração permite às empresas calcularem e escolherem se é mais vantajoso pagar uma alíquota sobre a receita bruta ou sobre a folha de pagamento. Por outro lado, as recentes reviravoltas na política de desoneração da folha refletem as complexidades e os desafios de se equilibrar o incentivo fiscal ao emprego e à produção nacional com a necessidade de manter a sustentabilidade das contas públicas e o ritmo de geração desses empregos.
Diante deste cenário, outro não pode ser o dilema: Como destravar o debate e permitir um melhor desenho de uma política socioeconômica de incentivo fiscal? Nossa sugestão de resposta (ou hipótese, em termos acadêmicos) junta um ditado popular e a própria Constituição Federal. O ditado popular é “se não pode derrotá-los, junte-se a eles”. Já o texto constitucional é aquele contido no art. 195, §9º, e que já serve de permissivo normativo para a atual política de desoneração da folha de pagamento.
Antes de mais nada, gostaríamos de destacar que já tivemos oportunidade de manifestar algumas das conclusões ora apresentadas em dissertação de mestrado, defendida e aprovada em banca pública realizada na PUC-SP, no ano de 2013[vi]. Ademais, passados 10 anos dessa defesa, infelizmente, tivemos a oportunidade de ver algumas das hipóteses ali teoricamente formatadas serem empiricamente confirmadas em recente boletim publicado pelo IPEA[vii].
O argumento central da dissertação foi juridicamente construído no sentido de (i) afirmar a constitucionalidade da política de desoneração da folha de pagamento criada pela Lei n. 12.546/2011 e (ii) criticar a escolha do critério “atividade econômica” para definir como se aplicaria a desoneração da folha de pagamento— ou, no juridiquês, para definir a natureza extrafiscal desse tributo—, dada sua incapacidade de alcançar o objetivo principal da política formulada, qual seja, de estimular a criação de novos postos de trabalho, bem como de proporcionar a criação de risco de queda da arrecadação previdenciária.
A conclusão formulada — e que esperamos ser digna de contribuir para o desenlace do debate — nasce da leitura do art. 195, §9º, da Constituição, com a redação dada pela EC n. 47/2005 e desprovida das alterações realizadas pelas EC n. 103/2019 e EC n. 132/2023, por se tratar da redação vigente à época da promulgação da Lei n. 12.546/2011: “As contribuições sociais previstas no inciso I do caput deste artigo poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão-de-obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho”. Dessa leitura percebe-se que a Constituição permitiu ao Legislador que escolhesse um, dentre os quatro critérios possíveis, para definir a natureza extrafiscal da contribuição sobre a folha de pagamento. Cruzando-se o objetivo principal da política de desoneração e os critérios constitucionalmente previstos para sua aplicação, fica evidente o erro que se arrasta desde 2011: Para fomentar a criação e manutenção de novos postos de trabalho, o critério correto seria o de utilização intensiva de mão de obra — e não o de atividade econômica! Afinal de contas, se a busca do pleno emprego (art. 170, VIII, CF) era a meta almejada, não importa em qual área ou setor da atividade econômica atuam as empresas—e até mesmo os municípios—, desde que elas sejam capazes de gerar empregos formais em alta demanda.
Em tese e juridicamente falando de algo que poderá ser economicamente aferido pelo Ministério da Fazenda, a adaptação da política de desoneração da folha para o critério de utilização intensiva de mão-de-obra será capaz de (i) premiar os reais intensivos geradores de empregos e (ii) compensar a eventual queda de arrecadação decorrente da desoneração com (ii.a) o aumento potencial de arrecadação promovida pelos trabalhadores formalizados, bem como com (ii.b) o aumento de alíquota e/ou alteração da base de cálculo para as empresas que menos empregam. Em outras palavras, a desoneração da folha de pagamento deixará a condição de política tributária setorial e alcançará a condição de política socioeconômica nacional, agregando os stakeholders realmente interessados na ampliação do mercado de trabalho formal e constrangendo os agentes demagogos e autocentrados, assim descritos para não usarmos termos mais pejorativos ou de baixo calão.
Por fim, cabe aqui lembrar que todo incentivo tributário é uma política socioeconômica e que funciona como um medicamento. É política socioeconômica porque envolve uma troca entre a sociedade e os agentes econômicos— de um lado, a sociedade privilegia os agentes econômicos com renúncia de arrecadação e, de outro, os agentes econômicos abandonam em parte seu comportamento individualizado e se alinham às políticas sociais, colaborando — no sentido de trabalhar em conjunto — ambas as partes para a promoção do desenvolvimento nacional[viii]. E, funciona como uma medicação porque, se bem aplicada, ajuda a curar o paciente, mas também pode levá-lo a óbito, se excedida a dose limite.
Assim, juntando-nos ao coro dos que temem pela queda dos empregos formais e, simultaneamente, àqueles que reconhecem ser a responsabilidade fiscal uma tarefa de todos os poderes da República, bradamos nossa resposta à pergunta: — Como reonerar a folha de pagamento? Desonerando, oras!
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[i] Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Mestre em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Especialista em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária (CEU) e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). É advogado militante, professor regular nos cursos de graduação em Direito e de pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e autor de artigos científicos publicados em revistas especializadas e obras coletivas sobre temas relacionados ao Direito do Trabalho, Direito da Seguridade Social, Riscos Jurídicos da Nanotecnologia e Aspectos Jurídicos da Inteligência Artificial. Áreas de atuação/interesse: Direito do Trabalho, Direito da Seguridade Social, Direito de Inovação, Inteligência Artificial e Nanotecnologia. Atuou como: Conselheiro da Carteira de Previdência dos Advogados de São Paulo (IPESP - Gestão 2012-2014). Membro da Comissão de Direito Processual do Trabalho da OAB/SP (2013-2015). Presidente da Comissão de Previdência Complementar do Instituto dos Advogados Previdenciários (IAPE - Gestão 2015-2017). Membro da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/SP (2019-2021). Membro das Comissões de Jurimetria Preditiva, de Direito Previdenciário, de Advocacia Trabalhista e de Direito Sindical da OAB/SP (2022-2024). Idiomas: português e inglês
[ii] Disponível em https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2012/abril/CartilhaDesoneracao.pdf. Acessado em 04.abr.2024.
[iii] Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/01/pacheco-prorroga-mp-mas-exclui-reoneracao-de-municipios. Acessado em 04.abr.2024.
[iv] Disponível em https://www.poder360.com.br/congresso/governo-deve-se-reunir-com-pacheco-na-2a-para-discutir-desoneracao/. Acessado em 04.abr.2024.
[v] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=PUcq1eZeVBA. Acessado em 04.abr.2024.
[vi] Disponível em https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/6137. Acessado em 04.abr.2024.
[vii] Disponível em https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/12343/6/Radar_73_Art2_setores_que_mais_desempregam_br.pdf. Acessado em 04.abr.2024.
[viii] Vide art. 1º, inc. III e IV; art. 3º, caput e incisos; art. 6º, caput e parágrafo único; art. 170, inc. VIII; art. 193, caput e parágrafo único; e art. 195, §9º, todos da Constituição Federal de 1988.